A basílica da Santa Cruz de Jerusalém

A primeira vez que São Josemaria foi rezar à Basílica da Santa Cruz de Jerusalém foi a 4 de agosto de 1946. Tinha chegado a Roma 2 meses antes.

Fachada da Basílica Santa Croce in Gerusalemme

Entre os judeus era proibido sepultar os condenados no cemitério comum, e esse foi um dos motivos por que levaram o corpo de Jesus para um cemitério particular, posto à disposição por José de Arimateia (cf. Mt 27, 60). Também os instrumentos de tortura usados para as execuções eram considerados impuros, e por isso enterravam-se ou eram atirados para alguma fenda do terreno, fora do alcance das pessoas.

Não menos ignominiosa do que esses instrumentos devia ser a colina do Gólgota (onde haviam crucificado Jesus Cristo) para os habitantes de Jerusalém, como revelam as conotações sinistras do seu nome latino: locus calvariae, lugar da caveira. Depois da Ressurreição do Senhor, sem dúvida produziu grande surpresa na cidade o fato de os cristãos se aproximarem com frequência daquele lugar desolador, para se ajoelharem na terra que tinha sido banhada pelo sangue de Cristo e para rezarem junto ao buraco onde tinha sido erguida a Cruz; iam também beijar a rocha em que tinha repousado o seu corpo morto.

Muito possivelmente esse costume teve de ser interrompido nalgumas épocas, por causa das perseguições e de outros acontecimentos, como a destruição de Jerusalém no ano 70 da nossa era. Não obstante, ainda se devia manter no século II, pois o imperador Adriano (117-138) mandou encher com terra a depressão que separava o Gólgota do Santo Sepulcro e nessa nova plataforma fez edificar dois templos: um dedicado a Juno, sobre o Santo Sepulcro; e outro dedicado a Vênus, no cimo do Gólgota. Sabe-se que Adriano tinha grande ódio pelo cristianismo no final da sua vida, e é quase certo que a construção desses templos tinha como fim apagar para sempre as marcas terrenas da Redenção.

Os primeiros historiadores eclesiásticos comentavam não com certa ironia o resultado paradoxal que com o decorrer do tempo, tiveram os esforços pagãos. Pobres homens! – interpelava-os Eusébio de Cesareia - Julgavam que era possível esconder ao gênero humano o esplendor do sol que se tinha erguido sobre o mundo! Não compreendiam ainda que era impossível manter oculto debaixo da terra Quem já obtivera a vitória sobre a morte[1]. Com efeito, no século IV, quando a Igreja conseguiu por fim a liberdade, os dois templos pagãos permitiram localizar sem margem de erro a situação dos Lugares Santos: bastou derrubá-los e escavar por baixo o Santo Sepulcro e o cimo do Calvário.

Imagem da imperatriz Santa Helena

A invenção (encontro) da Santa Cruz

A grande impulsionadora da redescoberta dos Lugares da Paixão foi a Imperatriz Santa Helena que em 326 viajou à Terra Santa. A mãe de Constantino era já de idade avançada – devia rondar os oitenta anos –mas não queria morrer sem antes ter rezado na terra onde o Senhor tinha vivido, morrido e ressuscitado.

Temos poucos dados sobre a juventude de Helena. Provavelmente nasceu em Bitínia e era de origem humilde. Segundo Santo Ambrósio era stabularia – isto é empregada ou criada numa estalagem – antes de se casar com Constâncio Cloro em 272, união da qual nasceu Constantino no ano seguinte. Constâncio era um ambicioso oficial do exército romano que em 293 alcançou a dignidade de César.

Nesse mesmo ano repudiou a sua esposa, que não tinha sangue nobre, e Helena ficou na sombra até que o seu filho Constantino em 306 lhe deu o título de Imperatriz. Nesse momento Helena já era cristã, e serviu-se da sua posição privilegiada para fazer o bem, exercitando a caridade entre os necessitados e impulsionando a extensão e a dignidade do culto. Brilhava tanto pela sua fé e piedade, que Santo Ambrósio não duvidada em louvá-la dizendo: Grande mulher, que ofereceu ao imperador muito mais daquilo que dele recebeu[2].

A construção das primitivas basílicas da Natividade em Belém, e da Ascensão, no Monte das Oliveiras deve-se à sua passagem pela Terra Santa. Relativamente ao Gólgota, quando Helena chegou a Jerusalém acabavam de ser demolidos os templos pagãos, de modo que a Imperatriz pôde cumprir o seu sonho de se ajoelhar na terra sobre a qual o Nosso Salvador tinha sido elevado na Cruz e rezar na rocha do Santo Sepulcro. Contudo, ali mesmo reparou que não tinha sido encontrada ainda a mais importante das relíquias.

Relicário com o "Titulus Crucis" e outro com os fragmentos da Cruz de Nosso Senhor

Santo Ambrósio descreve-a com grande vivacidade, caminhando entre as ruínas dos templos romanos acompanhada por soldados e operários. E perguntando-se: Eis aqui o lugar da batalha: mas onde está o troféu da vitória? Eu estou no trono e a cruz do Senhor enterrada no pó? Eu estou rodeada de ouro e o triunfo de Cristo entre as ruínas? (…) Vejo, diabo, que fizeste tudo o que era possível para que fosse sepultada a espada que te reduziu ao nada[3].

As novas escavações que a Imperatriz mandou fazer resultaram frutuosas quando, ao remover um terreno próximo do Gólgota, se encontraram três cruzes, e a tábua em que se tinha escrito em hebreu, grego e latim: Jesus Nazareno Rei dos Judeus. Assim teve lugar a invenção – a descoberta: inventio em latim significa encontrar alguma coisa – da Santa Cruz do Senhor, que tinha permanecido oculta durante três séculos. A Santa Imperatriz deixou a maior parte das relíquias em Jerusalém, mas levou consigo para Roma três fragmentos da Vera Crux – da cruz do Senhor, o título da condenação, um dos cravos e alguns espinhos da coroa que os verdugos tinham colocado em Jesus. Também fez transportar uma grande quantidade de terra do Gólgota e os degraus de pedra da escada que o Senhor percorreu quatro vezes no dia da paixão, a fim de comparecer diante de Pilatos no Pretório.

A Basílica Sessoriana, ou “Sancta Hierusalem”

Existem numerosos documentos do século IV e V que descrevem como, a partir da visita de Santa Helena, os cristãos veneravam as relíquias da Paixão que tinham ficado em Jerusalém. Assim o testemunham Eusébio, Rufino, Teodoreto e São Cirilo de Jerusalém. Egéria, uma mulher que peregrinou aos Lugares Santos no século IV, fala de multidões de fiéis que já então iam de todo o Oriente cristão participar nas solenidades em honra da Cruz.

Outro historiador, Sócrates, o Escolástico, recolheu a meados do século V uma piedosa tradição segundo a qual, durante a travessia marítima realizada pela Imperatriz de regresso de Jerusalém a Roma, teria havido uma forte tempestade. O navio debatia-se entre as ondas a ponto de naufragar, até que Santa Helena – depois de tê-lo atado com uma corda para deitar pela borda – fez com que o Santo Cravo que levava consigo tocasse as águas, e o mar acalmou instantaneamente.

Relicário com dois espinhos da Coroa (esquerda) e outras relíquias

Esse Cravo, os três fragmentos da Cruz e a tábua com a inscrição INRI foram piedosamente guardados por Santa Helena na sua residência imperial: o palácio Sessoriano. Ao cabo de alguns anos, possivelmente depois da morte da mãe, Constantino quis que se construísse ali uma basílica que tomou o nome do palácio, Basílica Sessoriana, embora também chamada Sancta Hierusalem. Como alicerce simbólico desta construção colocou-se terra do Gólgota que a Imperatriz havia trazido da Palestina, e os preciosos fragmentos da Santa Cruz expunham-se à vista dos visitantes num relicário de ouro adornado com pedras preciosas.

Da primitiva basílica constantiniana só se conservam alguns restos pertencentes aos muros exteriores. A essa edificação seguiu-se outra do século XII, por sua vez substituída pelo templo de estilo barroco tardio, terminado em 1744, que se pode contemplar atualmente. Apesar destas mudanças arquitetônicas e de outras vicissitudes históricas, como as invasões sofridas por Roma, toda uma coleção de documentos testemunha que as relíquias que se veneram nesta basílica são as mesmas que Santa Helena trouxe da Terra Santa.

É perfeitamente natural que este lugar se tenha convertido na meta da piedade do povo cristão. Muito cedo se começou a celebrar ali a liturgia de Sexta-Feira Santa. Até ao século XIV, o Papa pessoalmente, com os pés descalços, presidia a procissão que ia desde a Basílica de São João de Latrão até à Basílica da Santa Cruz, para adorar o vexillum crucis, a bandeira da Cruz, o estandarte da salvação.

4 de Agosto de 1946

São Josemaria foi rezar à Basílica da Santa Cruz de Jerusalém no dia 4 de Agosto de 1946. Nem sequer tinham passado 2 meses desde que chegara a Roma, a 23 de Junho. Desde a sua chegada à Cidade Eterna, tinha trabalhado intensamente na preparação dos documentos que deviam apresentar-se para obter o Decretum Laudis, no meio dos calores daquele verão e, apesar do mal estar produzido pela diabetes.

Este passo representava a aprovação da Obra como instituição de direito pontifício dotada de regime universal.

A São Josemaria urgia esta aprovação, que facilitaria a expansão apostólica do Opus Dei, e pôs todo o seu empenho para abreviar os prazos.

A 4 de Agosto, às cinco menos um quarto da tarde, o Cardeal Prefeito do Dicastério competente teve uma entrevista com D. Álvaro del Portillo para tratar da data de apresentação dos documentos. Foi então quando o Fundador da Obra decidiu passar essa tarde de domingo a rezar na Basílica da Santa Cruz de Jerusalém, enquanto D. Álvaro estava com o Cardeal.

É fácil adivinhar como seria a oração de São Josemaria naquela tarde: de petição confiada, cheia de fé; e ao mesmo tempo de aceitação plena da Vontade divina. Ali, ante as relíquias da Paixão, certamente pensou uma vez mais em que encontrar a Cruz de Jesus Cristo no caminho, nos confirma de que estamos na esteira dos seus passos[4].

O Decretum Laudis seria finalmente concedido pela Santa Sé seis meses depois, a 24 de Fevereiro de 1947. Embora o atraso fosse motivo de desgosto para o Fundador do Opus Dei, recebeu-o sem perder a paz, como uma oportunidade para abraçar a Cruz. E transmitiu essa atitude aos seus filhos.

Sempre tranquilos, e corajosos perante as contradições, se se apresentarem, perante o que a gente qualifica como fracassos. O êxito ou o fracasso está na vida interior. O êxito está em receber com paz a Cruz de Jesus Cristo, em estender os braços abertos, porque para Jesus como para nós a Cruz é um trono, é a exaltação do amor; é o cúmulo da eficácia redentora, para levar as almas a Deus, para levá-las segundo o nosso modo laical: com o nosso trato, com a nossa amizade, com o nosso trabalho, com a nossa palavra, com a nossa doutrina, com a oração e a mortificação[5].


[1] Eusébio de Cesareia, De vita Constantini, 3, 16.

[2] Santo Ambrósio, De obitu Theodosii, n. 41.

[3] Santo Ambrósio, De obitu Theodosii, n. 43-44.

[4] São Josemaria Escrivá de Balaguer, Carta 14-II-1944, n. 19.

[5] São Josemaria Escrivá de Balaguer, Carta 31-V-1954, n. 30.