A herança de um Fundador

O Bem-aveturado Álvaro del Portillo, viveu quarenta anos junto de São Josemaria. No ano de 1976, por ocasião do primeiro aniversário do falecimento do Fundador do Opus Dei, este artigo foi publicado em L’ Osservatore Romano.

“Enamora-me a ideia de que a vida é um consumir-se, um arder ao serviço de Deus. E desta maneira gastando-nos completamente por Ele, virá a libertação da morte, que nos conduzirá à vida”. Assim escrevia, numas notas pessoais dos primeiros anos da fundação do Opus Dei, Mons. Escrivá, a quem muitos milhares de pessoas em todo o mundo chamavam simplesmente Padre, porque se sabiam filhos da sua oração, da sua mortificação e do seu coração sacerdotal. Consumir-se, arder: o Senhor concedeu-lhe o cumprimento à letra daquele generoso programa, até ao ponto de chamá-lo para junto de Si precisamente no seu quarto de trabalho, depois de se ter dado com generosidade, até ao último instante, na sua catequese sacerdotal, que sempre despertava desejos eficazes de santidade, de abnegação e de apostolado. A vida de Josemaria Escrivá foi um fogo ininterrupto de amor de Deus, alimentado por uma luta ascética sem tréguas e por uma sede insaciável de levar almas a Cristo.

Entre os seus papéis encontrei esta outra nota, datada de 22 de Maio do ano passado: “É tão sutil o diafragma que nos separa da outra vida que vale a pena estar sempre preparados para empreender essa viagem com alegria”. Portanto, a sua passagem à eternidade não foi um acontecimento repentino, mas um modo novo e definitivo de arder, de prosseguir o diálogo iniciado nesta terra por quem, nos primeiros anos da sua vida sacerdotal, pedia: “Jesus, que eu seja o último em tudo... e o primeiro no Amor” (Caminho, n. 430).

A dor pela separação material de um Padre, de um pai, que nos recordava que não temos “um coração para amar a Deus, e outro para amar as pessoas da terra”, e que não se cansava de repetir que “devemos ser muito humanos porque, se não o formos, também não poderemos ser divinos”, é indelével. Mas o Padre goza agora do amor infinito, e a sua alegria derrama-se sobre os que levou no coração, que sentem a sua presença ainda mais próxima do que quando os ajudava e animava aqui na terra.

Nas mãos de Deus

"Sou um pecador que ama Jesus Cristo”, dizia de si mesmo Mons. Escrivá. A sua humildade era a de quem deseja ser instrumento dócil nas mãos do artista, e se esforça por não levantar obstáculos ao trabalho do artífice divino; era o abandono do filho que se sabe amado por seu Pai Deus.

Esta absoluta disponibilidade perante a Vontade Divina caracterizará toda a sua vida. Aos quinze anos pressente — esta é a palavra que sempre empregava — que o Senhor queria dele alguma coisa específica. E a própria decisão de se tornar sacerdote amadurece nele pelo afã de corresponder àquilo que de “específico” o Senhor lhe pedia, e que se haveria de determinar inequivocamente no dia 2 de Outubro de 1928, quando o Opus Dei nasceu. A pré-história da Obra está entretecida pelas invocações apaixonadas do Padre, estudante universitário e depois sacerdote jovem, que, com as palavras de Samuel, respondia: Ecce ego quia vocasti me! (Aqui estou porque me chamaste) enquanto vibrava com o grito do Mestre: Ignem veni mittere in terram, et quid volo nisi ut accendatur? (Vim trazer fogo à terra, e que quero eu senão que ele se ateie?).

Recordando os momentos da fundação e os primeiros anos de trabalho, o Padre escreveu: “Tinha eu vinte e seis anos, a graça de Deus e bom humor; nada mais. Mas, assim como nós, os homens, escrevemos com uma caneta, o Senhor escreve até com a perna de uma mesa, para que se veja que é Ele quem escreve”. E de novo: “O Senhor tratou-me como a uma criança: quando recebi a minha missão, se tivesse chegado a dar-me conta do que me iria cair em cima, teria morrido. Não me interessava ser fundador de nada. Pelo que se referia a mim e ao meu trabalho, sempre fui inimigo de novas fundações. Porque todas as antigas fundações, bem como as dos séculos imediatos me pareciam atuais. Certamente, a nossa Obra — a Obra de Deus — surgia para fazer com que renascesse uma nova e velha espiritualidade de almas contemplativas, no meio de todas as ocupações temporais, santificando todas as tarefas normais e correntes desta terra: pondo Jesus Cristo no cume de todas as realidades honestas em que os homens estão comprometidos, e amando este mundo, que fugia do Criador”.

A santificação do humano

”O que a ti te admira, a mim parece-me razoável. — Deus foi-te procurar no exercício da tua profissão? Foi assim que procurou os primeiros: Pedro, André, João e Tiago, junto das redes; Mateus, sentado à mesa dos impostos... E — assombra-te! — Paulo, no seu afã de acabar com a semente dos cristãos” (Caminho, n. 799). Todas as atividades humanas, o trabalho, a vida familiar e social, convertem-se num lugar de encontro com Deus, em caminho ao longo do qual se pode reconhecer “Jesus que passa”.

A teologia da criação e a teologia da redenção entrelaçam-se no plano concreto da vida cotidiana, orientada para Deus e para o serviço de todos os homens: “Todo o trabalho humano honesto, intelectual ou manual, deve ser realizado pelo cristão com a maior perfeição possível: com perfeição humana (competência profissional) e com perfeição cristã (por amor à vontade de Deus e em serviço dos homens). Porque, feito assim, esse trabalho humano, por humilde e insignificante que pareça a tarefa, contribui para ordenar cristãmente as realidades temporais— para manifestar a sua dimensão divina — e é assumido e integrado na obra prodigiosa da criação e da redenção do mundo: o trabalho é assim elevado à ordem da graça, santifica-se, converte-se em obra de Deus, operatio Dei, Opus Dei”.

Mas, para que isto seja possível, é preciso que o cristão se empenhe em viver as virtudes humanas e sobrenaturais: “se aceitamos a nossa responsabilidade de filhos seus, Deus quer-nos muito humanos. Que a cabeça toque o Céu, mas que os pés pisem com segurança a terra. O preço de viver cristãmente não é deixar de ser homens ou abdicar do esforço por adquirir essas virtudes...”

Estive durante quarenta anos junto do Fundador da Obra e posso testemunhar o heroísmo com que se empenhou, até ao último alento, por crescer nas virtudes, por arder sem deixar resíduos, por não oferecer a mínima resistência à Graça, esperando tudo da mão amorosa de Deus. Ainda agora me parece ouvi-lo repetir, com profunda convicção: “Não tenho nada, não valho nada, não posso nada, não sei nada, não sou nada: nada!”.

Esta visão profundamente humana e profundamente sobrenatural levava-o a incutir-nos esta ideia mestra: “Convencei-vos, meus filhos: aqui — nesta vida — tudo tem remédio! Tudo, até mesmo o pecado, que é o único mal verdadeiro. Porque inclusive o pecado — que devemos combater com todas as nossas forças, confiando na ajuda divina — tem remédio no Sacramento da Penitência, que restitui a saúde à alma e fortifica o cristão para a luta”. Uma peculiaridade constante do trabalho sacerdotal de Mons. Escrivá foi a de abrir às almas os horizontes da misericórdia divina, formando-as na sinceridade e na retidão de consciência, para aproximá-las do sacramento do perdão, que restitui “a liberdade e a alegria dos filhos de Deus”. Por isso não estranhei, embora me tenha emocionado e feito dar graças a Deus, saber que as Santas Missas celebradas em sufrágio de Mons. Escrivá, durante estes meses, em todo o mundo, têm congregado multidões imensas, dando ocasião a inumeráveis conversões e confissões. É a inesgotável fecundidade sacerdotal do Padre, que intercede do Céu para que o Senhor dê aos homens a serenidade e a paz de se saberem perdoados e amados, confirmando-os na edificação do reino de Deus.

Amor à Igreja e ao Papa

Na vida de Josemaria Escrivá não faltaram as contrariedades, a oposição, a calúnia, porque não existe santidade cristã sem a cruz. A cruz, que o Padre sempre descrevia como o trono donde Cristo abre os braços com gesto de Sumo e Eterno Sacerdote para apertar contra o Seu coração chagado todos os homens de todos os tempos. Nem sequer nas horas mais difíceis a serenidade, o sorriso e o bom humor abandonaram o Padre, sempre sustentado por um profundo sentido da filiação divina. Com naturalidade, com visão sobrenatural, com cordialidade humana e com uma contagiosa simpatia, dedicou-se incansavelmente a “afogar o mal em abundância de bem”.

O seu amor à Igreja e ao Papa manifestava-se numa ilimitada vontade de serviço, opere et veritate: “Considero-me o último dos sacerdotes da terra, mas ao mesmo tempo queria que ninguém me levasse a palma em amar e servir a Igreja e o Papa, porque este é o espírito que recebi de Deus, e que trato, com todas as minhas forças, de transmitir a cada um dos meus filhos em todo o mundo... A única ambição, o único desejo do Opus Dei e de cada um dos seus filhos é servir a Igreja como ela quer ser servida dentro da vocação que o Senhor nos deu”.

São Josemaria com Paulo VI no Centro ELIS

Esta fortaleza, esta lealdade, esta fé, esta alegre disponibilidade sem reservas e sem regateios, são possíveis em quem encontrou Cristo. Este é o segredo que Mons. Escrivá proclamou aos quatro ventos durante toda a sua vida: “Um segredo. - Um segredo em voz alta: estas crises mundiais são crises de santos. Deus quer um punhado de homens “seus” em cada atividade humana. - Depois... pax Christi in regno Christi - a paz de Cristo no reino de Cristo” (Caminho, n. 301).

Um segredo em voz alta

Para difundir este chamamento, o Senhor serviu-se de um sacerdote que não ensinou nunca nada que não tivesse experimentado antes na sua própria vida, de acordo com o exemplo de Cristo, que coepit facere et docere, “começou a fazer e ensinar” (At. 1,1). Deus, na sua amorosa misericórdia, quis fazer ver ao nosso Fundador, já nesta terra, a maravilhosa fecundidade daquela semente plantada, por sua mediação, no dia 2 de Outubro de 1928: o Opus Dei difundiu-se por todo o mundo; milhões de pessoas, das mais diversas raças e condições, têm-se aproximado de “Jesus que passa” através da catequese oral ou escrita do Padre e do trabalho dos seus filhos nos cinco continentes; personalidades da vida civil e cultural apreciam no seu justo valor as repercussões do trabalho espiritual promovido por Mons. Escrivá; teólogos estudam as suas riquezas doutrinais; bispos exprimem gratidão pelos frutos de vida cristã que recolhem nas suas dioceses através do trabalho apostólico do Opus Dei. Tudo isto se revela nas inumeráveis mensagens de condolências que tenho recebido ao longo destes meses. Tanta participação e tanto afeto têm-me confortado e comovido, ao fazer-me ver a universalidade dos tesouros de graça que o Senhor quer distribuir aos homens através do Opus Dei. Em toda a parte tenho encontrado propósitos de renovação interior, de dedicação apostólica, de fidelidade à Igreja; e compreendi que muitos, mesmo não cristãos, graças ao calor espiritual recebido da sua colaboração com as atividades apostólicas do Opus Dei, captaram um lampejo de amor de Cristo.

Este panorama, já imenso, confirma que o campo semeado por Mons. Escrivá está em pleno desenvolvimento e frutificará ao longo dos séculos, enquanto na terra houver homens que trabalhem, queiram santificar-se no trabalho e santificar os outros com o trabalho. No entanto, este homem de Deus, na véspera das suas bodas de ouro sacerdotais, em 27 de Março do ano passado, confiava-nos: “Ao cabo de cinquenta anos estou como uma criança que balbucia. Estou a começar, a recomeçar em cada dia. E assim até ao final dos dias que me restarem: sempre a recomeçar. O Senhor assim o quer, para que não haja em nenhum de nós motivos de soberba, nem de vaidade. Temos de estar pendentes d'Ele, dos seus lábios: com o ouvido atento, com a vontade tensa, disposta a seguir as inspirações divinas”.

O chamamento a suceder a tão grande Fundador seria angustiante se não proviesse do Senhor, que escolhe o que não tem valor para que assim resplandeça melhor a força do seu amor (cf. 1 Cor. 1, 27-29). O nosso Fundador deixou-nos um espírito “não só desenhado, mas esculpido”. Em 26 de Junho de 1975 começou para o Opus Dei a época da fidelidade e da continuidade, sob a proteção amorosa de um Padre, de um pai, que abriu a todos os homens “os caminhos divinos da terra”.

L' Osservatore Romano (edição em língua espanhola), 4 de Julho de 1976