O amor à Igreja e ao Papa em "Caminho"

Apresentamos a tradução do artigo “El amor a la Iglesia y al Papa en Camino”, publicado em "Estudios sobre Camino", onde se recolhem considerações de S. Josemaria sobre o amor à Igreja e ao Papa.

Gonzalo Aranda, José R. Villar

Apresentamos a tradução do artigo “El amor a la Iglesia y al Papa en Camino”, publicado em "Estudios sobre Camino", onde se recolhem considerações de S. Josemaria sobre o amor à Igreja e ao Papa.

«Que alegria poder dizer com todas as forças da minha alma: amo a minha Mãe, a Santa Igreja!» (Caminho, n. 518). «Obrigado, meu Deus, pelo amor ao Papa que puseste no meu coração.» (Caminho, n. 573). Nestas duas breves afirmações, revelam-se-nos os sentimentos de Josemaria Escrivá, ainda jovem sacerdote, para com a Igreja e o Papa. O tempo viria a confirmar, robustecer e comprovar com obras, opere et veritate, essas sementes lançadas na sua alma pelo Divino Semeador (1). Mas já, desde os primeiros anos do seu ministério sacerdotal, o autor revela em Caminho o profundo amor à Esposa de Cristo e ao seu Vigário na terra, que se traduz numa sincera e espontânea expansão de alegria e acção de graças a Deus, e se manifesta num amor firmemente enraizado no coração, que é proclamado com a absoluta segurança da fé.

Vista de São Pedro de Città Leonina, primeira residência de S. Josemaria em Roma, 1946

Caminho contém a experiência pastoral de Josemaria Escrivá, acumulada nos seus primeiros anos de atividade sacerdotal. A natureza da obra sugere-nos o modo adequado de aceder ao seu conteúdo. O autor não pretende elaborar uma reflexão teológico-dogmática sobre os mistérios da nossa fé, embora - como é natural - esses pressupostos estejam subjacentes na vida cristã que apresenta. Voltaremos mais adiante a este ponto. Em qualquer caso, a sua intenção consiste em suscitar no leitor, ajudado pela graça divina, desejos de conversão, de amor e de crescimento espiritual (2). A forma própria de Caminho aponta, pois, para a vida quotidiana do cristão, para a significado existencial das exigências da fé. Alguns leitores poderiam sentir-se dececionados se estivessem à procura de reflexões teológicas originais em que fundamentar, por exemplo, o início da renovação eclesiológica do nosso século, para citar o âmbito em que nos situamos. Este método conduziria a um erro de óptica que invalidaria os resultados (3). Não queremos, com isto, afirmar que Caminho careça de originalidade eclesiológica, mas o seu objetivo não é apresentar uma teologia concebida na serena quietude de um gabinete, e que posteriormente incidisse na vida cristã. O seu intuito - e aqui reside o seu valor - é uma vida feita realidade no existir concreto do cristão que obriga a teologia a repensar alguns pressupostos nem sempre completos. Neste sentido, Caminho é profundamente renovador, com a perene novidade do Evangelho (4).

O amor à Igreja e ao Papa aparecem em Caminho como uma confidência amiga, e um testemunho pessoal do seu autor. «Vou reavivar as tuas recordações para que se eleve algum pensamento que te fira», adverte o leitor no início das suas páginas. Com efeito, através de expressões rápidas, sugestivas, exortatórias e, sempre, iluminadoras, Caminho anima o seu interlocutor a despertar em si próprio as virtualidades divinas que o Batismo depositou no seu ser. Subjaz nas suas palavras o sentido de que o cristão foi chamado a uma salvação pessoal, certamente, mas inserido na comunidade da nova Aliança eterna, fundada no Sangue redentor do Deus feito Homem (5). Em Caminho, as grandes realidades da nossa vida em Cristo são transferidas para cada cristão num tom íntimo, pessoal. O autor deseja, expressamente, atingir com os seus escritos a vida corrente e normal em que se desenrola o seu trabalho habitual. Neste sentido, entende-se que o amor à Igreja e ao Vigário de Cristo não apareçam como tentativa de argumento teológico, em que a fides quaerens intellectum prevaleça sobre outras considerações. Pelo contrário, Caminho procura suscitar a fides quae per charitatem operatur (cf. Gl 5, 6), uma fé admitida sem vacilações, que, pela sua própria dinâmica, se reflete numa vida plena de caridade, de obras.

Logo, o amor à Igreja e ao Romano Pontífice não são objecto de um tratamento apologético nem de um estudo teórico que alimente exclusivamente a inteligência cristã. Dá este processo por adquirido. É, pelo contrário, uma partilha, com os seus irmãos na fé, da alegria de servir a Igreja, do gozo na contemplação do mistério, e até um grito de júbilo ao saber-se inserido desse modo em Cristo. Claro está, tudo isto supõe uma profunda teologia feita vida, ou, se quisermos, uma existência teologal que, sem procurar uma averiguação reflexiva sobre a sua fé, se expressa nas suas manifestações mais práticas. Nas afirmações mais simples e elementares de Caminho esconde-se a secular riqueza da fé da Igreja. Por isso, encontraremos no livro um vínculo natural com o património doutrinal cristão: quod semper, quod ubique, quod ab omnibus, segundo a célebre expressão de S. Vicente de Lerins (6). E, acrescentamos, não só com aquilo em que sempre se acreditou, mas também com aquilo que os filhos da Igreja constantemente converteram em seiva vivificadora da sua existência de cristãos (7).

O amor à Igreja e ao Papa aparecem em Caminho como uma confidência amiga, e um testemunho pessoal do seu autor.

S. Paulo ensina que Cristo amou a Igreja como sua esposa entregando-se a Si próprio para a santificar (Ef 5, 25-26). O Apóstolo revela aos primeiros cristãos de Éfeso o verdadeiro rosto da Igreja: a Esposa santificada por Cristo. Assim nos adentramos na primeira manifestação de amor dos membros da Igreja. Na verdade, a manifestação de amor própria dos filhos consistirá em reproduzir em si próprios o carácter santo de tal Mãe que os engendrou em Cristo. Essa santidade ontológica da Igreja, difundida da sua Cabeça até aos membros, leva os cristãos a manifestarem nas suas vidas os «frutos de graça que o Espírito Santo produz nos fiéis» (8). Podia realmente dizer-se que todo o conteúdo de Caminho reflecte essa dimensão do amor filial para com a Igreja, já que nada ais pretende do que facilitar a santidade pessoal, muito particularmente daqueles que constituem a maioria dos seus membros, os leigos. Mostra-lhes que o mundo, onde se sabem imersos, não é algo circunstancial que têm de enfrentar, mas a matéria da sua santificação e, também, o modo específico do seu Caminho eclesial; assumem, deste modo, in Christo et in Ecclesia as realidades criadas, forjando a continuidade com o desenlace final da história, com o momento em que Cristo se submeterá àquele que tudo lhe submeteu, a fim de que Deus seja tudo em todos (cf 1Cor 15, 28).

As confidências pessoais do autor de Caminho têm, pois, uma intencionalidade bem clara, que se entende à luz do próprio prólogo: que o leitor entre também por Caminhos de santidade, pelas vias de uma vida cristã de acordo com o seu novo nascimento em Cristo, e proceda de forma coerente com o seu novo ser, como membro do Corpo de Cristo que é a Igreja. Manifestação de amor por ela será adornar a Igreja-Mãe com as virtudes dos seus filhos.

De um modo mais imediato, ao longo de todo o livro, e particularmente nos pontos 517 a 527 – sob o título A Igreja - o autor pretende despertar e consolidar esse amor pela Esposa Imaculada: de modo paulatino, ganham evidência os fundamentos desse amor, as suas características, as suas exigências e, também, as suas manifestações. Naturalmente, tudo isto não aparece de forma sistemática, mas ao longo dos diversos capítulos, que levam o leitor a tomar a sério e a responder decididamente à vocação divina. Dessa vocação, irrompe uma dimensão intrínseca à existência cristã: não é possível ser plenamente cristão e católico sem um profundo amor à Igreja e ao Papa. Toda a conduta cristã deve deixar-se impregnar por um amoroso sentire cum Ecclesia, tradução visível da união fecunda do sarmento com a Vide, Cristo (cf. Jo 15, 5) (9). E, como critério imediato dessa vida de comunhão, o cristão olha para o Bispo de Roma, princípio visível da unidade da Igreja (10).

O fundamento do amor à Igreja

Em Caminho, o amor à Igreja é algo conatural no cristão. Brota espontaneamente da meditação sobre a natureza da Igreja e aparece inseparavelmente unido com o amor a Jesus Cristo, inserido no processo de identificação com Ele. Não se pode separar o Corpo da Cabeça, nem a Esposa do Esposo. A fé em Jesus Cristo engloba a fé na Igreja.

a) A fé na Igreja

Graças ao magistério doConcílio Vaticano II possuímos nos nossos dias um guia seguro para penetrar, a partir da fé, no «mistério da Igreja». Com efeito, a Igreja é uma realidade sobrenatural, que entra no conteúdo do acto de fé. Como tal a professamos no Credo, desde os primeiros Símbolos. A Igreja, vinculada na sua origem no tempo com a Encarnação do Verbo redentor (11), contém na sua natureza, na sua origem, no seu desenvolvimento e no seu destino final o sinal do mistério de Deus Uno e Trino. Esta Igreja, em que Cristo se torna presente no mundo (12), é por sua vez palpável e presente na vida humana, embora transcendendo a sua visibilidade histórica. É o reinado de Cristo in mysterio, crescendo até à consumação final (13).

Para compreender o que é a Igreja há que contemplá-la com a visão elevada pelo dom da fé, e assim se chega, mais que a um entendimento intelectual -pelo qual se esforçam os teólogos, embora conscientes de que nunca conseguirão esgotá-la -, a uma vivência interior, uma participação conatural na ciência divina que produz sabedoria e gozo. Sob este aspecto, é significativo encontrar logo no primeiro ponto de Caminho dedicado à Igreja um convite à meditação do mistério, retirado espontaneamente das palavras do Credo: «"Et unam, sanctam, catholicam et apostolicam Ecclesiam!..." - Compreendo essa tua pausa, quando rezas, saboreando: creio na Igreja, Una, Santa, Católica e Apostólica...» (Caminho, n. 517). Estas palavras situam-nos perante o mistério da Igreja, que é realidade de graça invisível e, ao mesmo tempo, uma comunidade concreta, visível na terra. Trata-se da Igreja de Jesus Cristo, reconhecida nas quatro notas clássicas, quer dizer, as propriedades da natureza da Ecclesia in terris, que a tradição e a teologia explicitam a partir do artigo do Símbolo professado, e que só se encontram na Igreja Católica como realidade histórica visível.

Para compreender o que é a Igreja há que contemplá-la com a visão elevada pelo dom da fé, e assim se chega, mais que a uma compreensão intelectual a uma vivência interior

O encontro salvador com Cristo só é possível na sua comunidade de salvação, na Igreja que Cristo quis (14). Não há vida plenamente cristã, de Cristo, à margem da sua Igreja. Esta visibilidade institucional não é puro acidente necessário à nossa condição humana e, neste sentido, desprovido de significado salvífico. A fé leva a aceitar que Cristo estabeleceu a dimensão institucional (sacramentos, hierarquia, etc.), como meio de salvação, instrumento de mediação de graça: a Igreja «é em Cristo como um Sacramento, ou seja sinal e instrumento da união com Deus e da unidade de todo o género humano» (15). A fé na Igreja reconduz à fé em Cristo, que a dotou de eficácia; a decisão perante a Igreja comporta uma tomada de posição frente a Cristo (cf. Lc 10, 16). Esse gosto espiritual - «saboreai», diz o autor (16) - pela unidade, santidade, catolicidade e apostolicidade, encerra a confissão de fé mais essencial na continuidade histórica de Cristo na Igreja. Cristo continua, hoje, a oferecer a salvação a cada homem, numa comunidade concreta e delimitada.

Mas se a fé é elemento que edifica a vida cristãin Ecclesia, Caminho não esquece que, junto à fé, estão os sacramenta fidei: «Que bondade a de Cristo ao deixar à sua Igreja os Sacramentos! - São remédio para cada necessidade. - Venera-os e fica muito agradecido ao Senhor e à sua Igreja» (n. 521). A Igreja, dispensadora dos canais da graça, torna acessível, hic et nunc, o contacto salvífico com Cristo. Mas é ao Senhor que se dirige, em primeiro lugar, o agradecimento, já que, na sua infinita bondade, quis uma nova economia da graça por meio de sinais eficazes. O próprio Cristo continua a atuar por meio do grande sacramento da Igreja. Perante a misericórdia divina, sugere-nos Caminho, apenas cabe amor, veneração, gratidão.

b) O reino de Cristo na Terra

A Igreja é de Jesus Cristo. Ela é o seu corpo, a sua Esposa; Ele é a sua Cabeça, o seu Senhor. Só em seu nome e, mais ainda, porque Ele próprio atua n’Ela, pode a Igreja oferecer remédio para as necessidades mais profundas do homem. Mas isto exige dar lugar ao senhorio de Cristo nos corações humanos, que os faz verdadeiramente livres da escravidão do pecado. Eis outro motivo de amor à Igreja, que não passa inadvertido à meditação de Caminho.

Essa autoridade de Cristo, presente em muitos pontos do livro, é descrita pelo autor como uma realização conjunta do poder da graça divina e da livre correspondência humana. A Igreja surge assim como o âmbito do reinado de Cristo que se estabelece pela Palavra de Deus que, na Igreja, suscita a resposta da fé; e pelos sacramentos, que realizam verdadeiramente o anunciado. O cristão que deixa crescer o Reino na sua vida, torna-se portador do reinado de Cristo, com a sua vida santa e com o seu apostolado: «(...) Se fores generoso..., se corresponderes com a tua santificação pessoal, obterás a dos outros: o reinado de Cristo (...)» (Caminho, n. 833). O cristão deve identificar-se com um desejo apaixonado de dilatar o reino de Cristo - «Deus e audácia! - "Regnare Christum volumus!"», escreve no ponto 11 - que leve a lançar, no nosso caminhar terreno, uma verdadeira semente do Reino: «(...) - Deus quer um punhado de homens "seus" em cada actividade humana. - Depois... "Pax Christi in regno Christi" - a paz de Cristo no reino de Cristo.» (n. 301).

Vinte e cinco anos depois da primeira edição de Caminho em 1939, o Concílio Vaticano II ensinaria que toda a Igreja recebe a missão de anunciar o reino de Cristo e de o instaurar. Ela mesma se torna, hic in terris, na sua semente e princípio (17). Cada cristão participa desta missão. Em Caminho está subjacente essa compreensão da relação existente entre a Igreja e o reino de Cristo, e especialmente o papel de cada cristão na sua edificação, expresso nesse diálogo direto com o leitor que caracteriza a obra deste santo. Através da Igreja, o cristão constrói um Reino - com Cristo -, que, sem dúvida, se consumará no tempo escatológico, mas já agora se edifica. Esta será uma das razões para amar a Igreja e se entregar com alegria ao apostolado: «"Et regni ejus non erit finis"- O seu Reino não terá fim! - Não te dá alegria trabalhar por um reinado assim?» (n. 906).

O Papa João XXIII recebeu em audiência S. Josemaria e D. Álvaro del Portillo

Porque a Igreja já é o reino de Cristo desde o seu início, e Ele é o seu fundamento atual e perene, Caminho transmite essa segurança que a promessa da indefectibilidade confere. A Igreja, que peregrina entre «as perseguições do mundo e as consolações de Deus», como recordava o Bispo de Hipona, não cairá. Essa mesma convicção de sempre deve sustentar a fé do cristão perante a perseguição e a contradição - «não há vento nem furacão que possam arrancar a árvore da Igreja» - que Deus permite, por vezes, como purificação (18). A sorte, de certo modo, está decidida de modo definitivo. Mas o poder soberano de Deus pede uma condição para se revelar: «Deus é o mesmo de sempre. - O que falta são homens de fé; e renovar-se-ão os prodígios que lemos na Sagrada Escritura. - "Ecce non est abbreviata manus Domini". - A mão de Deus, o seu poder, não diminuiu!» (n. 586). O autor quer situar-nos na perspectiva certa, perante a fácil tentação de uma visão meramente humana da acção da Igreja. Com efeito, é o Senhor que continua a atuar entre os homens quando encontra fé. Os prodígios, as intervenções salvadoras de Deus, que a Sagrada Escritura nos narra, dão-se também agora no seu novo Povo, porém - como tantas vezes nos advertem os Evangelhos - Cristo exige a fé n’Ele.

Caminho não é um livro que incite a desejar acontecimentos espectaculares na Igreja, ou a solicitar intervenções deslumbrantes da omnipotência divina. Certamente, há ocasiões em que serão necessárias. No entanto, em todo o livro transparece o amor pela acção extraordinariamente habitual de Deus nas nossas vidas. É elucidativo, a este respeito, todo o capítulo dedicado a “Coisas pequenas”. Grave despropósito seria para o cristão descuidar, ter em pouca monta, os canais habituais em que o Senhor continua a realizar, na Igreja, prodígios silenciosos: a vida sacramental, a oração, a formação na fé, deixar-se guiar pela atenção pastoral e materna da Igreja. O amor e a fé em Cristo abarcam amor e fé na Igreja, onde se inicia o reino, que cresce, hoje e agora, mas em mistério, quer dizer, revelado somente a um olhar de fé.

c) O cristão, filho da Igreja: envolvido na sua missão

O amor à Igreja fundamenta-se no facto de ser obra de Cristo. Foi Ele que a fundou, que lhe envia o seu Espírito, e continua presente, operativo e eficaz, nela e através dela. A Igreja, enviada por Ele ao mundo do universo, recebe a missão de anunciar e realizar a salvação efectuada uma só vez pelo Sangue do seu Senhor. Caminho leva cada cristão a sentir-se parte implicada na missão: «"Ide, pregai o Evangelho... Eu estarei convosco...". - Isto disse Jesus... e disse-to a ti.» (n. 904). Quer despertar, com estas palavras, essa «memória» cristã da missão, guardada na Escritura e na Tradição (19).

Na verdade, dá-se uma continuidade real entre os discípulos imediatos de Jesus, os que vieram posteriormente em sucessivas gerações e os que formam hoje a Igreja no séc. XX. De certo modo, o autor descreve a Igreja como uma grande família, a «família de Deus» de que fala o Apóstolo (cf. Ef 2, 19-22; LG, n. 6), em que existem costumes de família, uma tradição, vínculos íntimos sobrenaturais entre os seus membros; e, por fim, um destino comum, uma missão solidária, para a qual possuímos determinados meios: o Crucifixo e o Evangelho (20). Por vezes, chama-se aos Apóstolos «os primeiros» (21), indicando deste modo que os outros formam uma cadeia que se lhes segue no tempo, mas, sobretudo, que «os primeiros» - os Apóstolos, os discípulos, os que acolheram a Boa Nova desde o Pentecostes – estabelecem com a sua vida condutas normativas para as gerações posteriores, um espírito que se transmite feito vida. Em primeiro lugar está, naturalmente, o exemplo do Mestre (22). Depois, a conduta apostólica: «Bebe na fonte límpida dos "Actos dos Apóstolos " (...)» (n. 570); e na dos discípulos: «(...) procura conhecer e imitar a vida dos discípulos de Jesus, que conviveram com Pedro e com Paulo e com João, e quase foram testemunhas da Morte e da Ressurreição do Mestre » (n. 925).

Conhecer, viver e amar aqueles primeiros passos de Igreja não será tanto um puro conhecimento, no fundo algo frio e distante, como tratar de se incorporar plenamente a uma comunhão de fé, esperança e amor com os primeiros no tempo.

Paulo VI com S. Josemaria em 1965.

A consciência de participar de uma mesma fé, sacramentos e de idêntica missão - cumprir «um mandato imperativo de Cristo» (23) -, introduz-nos assim, numa perspectiva solidária, «familiar» dizíamos antes, da natureza da Igreja. O cristão não pode olhar para a Igreja como algo que lhe é alheio, aquilo que se observa e julga exteriormente. Atentaria contra si próprio; ele próprio ficaria incompreensivelmente à margem da sua Família. Deve sentir-se um membro mais, chamado por vocação divina. Caminho reafirma esta visão sobre o modo de ser e viver in Ecclesia, quando foca a relação de cada membro com a Igreja como uma relação filial, o vínculo amoroso que une um filho com a sua Mãe. Basta recordar S. Cipriano e Santo Agostinho para comprovar que nos encontramos perante o património genuíno da Tradição (24). A relação filial com a Igreja aparece fortemente personalizada: a Igreja é «a minha Mãe»; «eu sou filho da Igreja» (25).

O amor surgirá como a manifestação mais natural; a rejeição, o desamor, como uma aberração. A Igreja é Mãe que gera filhos para a vida sobrenatural, os alimenta e robustece com os sacramentos - especialmente a Eucaristia -, que lhes ensina os mistérios divinos. Ao considerar a Igreja como Mãe, cada cristão pode fazer suas aquelas palavras que o Salmista cantava sobre Jerusalém: Pegue-se a minha língua ao paladar se não me lembrar de ti; se não colocar Jerusalém acima de todas as minhas alegria (Sl 137, 6). Na verdade, a Igreja na Sagrada Escritura é chamada nossa mãe e a Jerusalém celestial. Assim a chama S. Paulo em Gl 4, 26 estabelecendo uma contraposição entre a Jerusalém histórica, representada em Agar, a esposa escrava de Abraão, e a Igreja como povo nascido da nova Aliança representada em Sara, a esposa livre. A Igreja é a Jerusalém do alto, livre; e se a Jerusalém se lhe chama Mãe, porque todos nasceram nela (Sl 137, 5), quanto mais isto mesmo se chama agora à Igreja, na qual nascemos como filhos de Deus.

Algumas características do amor à Igreja

O amor à Igreja fundamenta-se numa profunda visão de fé na sua natureza: na mediação visível pela qual Cristo continua a atuar na história; no reinado de Cristo, que se desenvolve no tempo; na comunhão dos discípulos de Jesus Cristo, desde os Apóstolos até nós; no facto de ser nossa Mãe da qual nascemos para a vida da Graça. Motivos todos eles pelos quais a Igreja é digna de amor, veneração e fidelidade.

Não encontramos ao longo da leitura do Caminho uma definição teórica, sistemática e detalhada, do que é o amor à Igreja. Em troca, podemos apreender os sentimentos que acompanham o dito amor, os traços característicos que apresenta. Neste sentido, o autor atua de modo natural: em primeiro lugar o amor vive-se; depois, descreve-se, traduz-se expressamente, e, contudo, nunca acaba de se transmitir por inteiro até que não se experimenta de modo pessoal. No fundo, o amor à Igreja é um dom de Deus. Por isso, Caminho não tenta convencer o leitor mas sim acompanhá-lo num «Caminho» interior, revelando-lhe a beleza da Igreja, à espera que a graça o induza a unir-se à sua admiração.

Caminho não tenta convencer o leitor mas sim acompanhá-lo num «Caminho» interior, descobrindo-lhe a beleza da Igreja

a)O amor à Igreja leva a captar, numa experiência habitual e vulgar, os reflexos da essência íntima da Igreja: a Comunhão dos Santos. «Vivei uma particular Comunhão dos Santos: e cada um sentirá, à hora da luta, e à hora do trabalho profissional, a alegria e a força de não estar só» (n. 545). Viver na Igreja é, radicalmente, deixar-se inundar por uma vida de comunhão com Deus e com a humanidade (cf. Const. Dogm. Lumen gentium, n.1); com isso, a fraternidade cristã, distante de uma sábia filantropia, tem como resultado um comportamento ancorado em Cristo: «Saudai todos os santos. Todos os santos vos saúdam. A todos os santos que vivem em Éfeso. A todos os santos em Cristo Jesus, que estão em Filipos” – Não é verdade que comove aquele apelativo – santos! – que empregavam os primeiros fiéis cristãos para se designarem entre si? – Aprende a tratar com os teus irmãos» (Caminho, n. 469). Desta convicção de «viver entre santos», alheia a uma conceção paradisíaca que ignora a queda original (26), surgem as exigências amáveis da fraternidade eclesial: a caridade silenciosa (27), a lealdade incondicional aos irmãos na fé (28), etc.; por fim, a fortaleza que todos os filhos da mesma Mãe devem prestar entre si (29).

Amar a Igreja pressupõe sentir com ela, partilhar as suas alegrias e sofrimentos, viver na prática a gozosa realidade da comunhão dos santos, abrangendo, para lá da nossa geração, todos os que nos precederam. Unidos na penitência (30), contemplando no corpo os sofrimentos de Cristo pela sua Igreja (cf. Col 1, 24); unidos na tarefa apostólica, por amor a Jesus Cristo (31).

João Paulo II com jovens

b) Outra característica do amor à Igreja, vigorosamente exposta em Caminho, é a dimensão universal que adquire esse amor. A Igreja é «Católica», «universal»; assume todos os afãs nobres, e verdadeiramente humanos, em Cristo: «Católico!: coração grande, espírito aberto», exclamará o autor (32). O horizonte do filho da Igreja é o mundo inteiro, que rejeita espíritos acanhados, de voos curtos. Amar a Igreja implica amar em Cristo e para Cristo todas as realidades humanas que surgiram do amor criador de Deus.

O amor à Igreja impele, por sua vez, a reconhecer a ação do Espírito Santo, que age onde quer e como quer. Implica alegrar-se pelo trabalho que outros realizam no serviço à Igreja: «É mau espírito o teu se dói que outros trabalhem por Cristo sem contarem com o teu apostolado» (33). Denotaria um falso amor o espírito exclusivista, que desconfiasse por princípio ou visse com preconceitos qualquer iniciativa ou movimento apostólico que aparecesse no seio da Igreja. Na Igreja deve haver muitos Caminhos, recorda-nos no ponto 964: «(…) para que todos possam encontrar o seu, nessa variedade admirável (…)». Tal diversidade não atentará contra a unidade da Igreja, quando o Espírito Santo está na sua origem, pois o Espírito une em comunhão e ministério, dota-a e governa-a com diversos dons hierárquicos e carismáticos, e embeleza-a com os seus frutos (cf. Const. Dogm. Lumen gentium, n. 4). Só devemos alegrar-nos e amar tal variedade: «Alegra-te quando vires que outros trabalham em bons campos de apostolado. – E pede, para eles, graça de Deus abundante e correspondência a essa graça (…)» (Caminho, n. 965) (34).

Exigências fundamentais do amor à Igreja

O cristão, se é consciente da sua vocação, não pode deixar de sentir na sua pessoa o reflexo da santidade da Igreja; e, ao mesmo tempo, a sua participação na missão a ela confiada. Em primeiro lugar, sente-se impelido a deixar transparecer na sua vida o espírito da sua Santa Mãe. O amor à Igreja comportará, em segundo lugar, um estímulo constante para cumprir com maior fidelidade a parte que lhe compete na missão; e esse mesmo amor levá-lo-á a defendê-la, a amá-la nas suas instituições e a vibrar interiormente com a vida da Igreja.

a) Aludimos no começo destas páginas à santidade da Igreja. Com efeito, a Igreja surge na história e no mundo como o povo santificado pelo sangue de Jesus Cristo; nação santa, povo adquirido por Deus, chama-lhe S. Pedro na sua primeira epístola (1 Pet 2, 9). A Igreja é a Esposa do Cordeiro Imaculado. E o Concílio Vaticano II parte, precisamente, dessa santidade da Igreja para recordar aos cristãos as exigências da sua vocação batismal: «por isso, todos, tanto os que pertencem à Hierarquia, como os doutrinados por ela, são chamados à santidade» (Const. Dogm. Lumen gentium, n. 39). São Josemaria Escrivá, durante toda a sua vida, fixou como fundamento do seu ministério sacerdotal, desde os primeiros anos, acordar a consciência dos cristãos para o facto de serem chamados à santidade. Em Caminho, o chamamento universal para a santidade e para o apostolado ressoa em toda a parte e é dirigido, particularmente, aos cristãos correntes: «Tens obrigação de te santificar. – Tu, também. – Quem pensa que é tarefa exclusiva de sacerdotes e religiosos? A todos, sem excepção, disse o Senhor: “Sede perfeitos, como meu Pai Celestial é perfeito”» (n. 291) (35).

Caminho assinala a especial responsabilidade que incumbe neste âmbito àqueles católicos cujo trabalho —nos meios de comunicação social, ou pelo seu cargo na vida política ou pela sua preparação científica— têm uma atividade de grande influência social

Porque a Igreja é santa, a primeira manifestação de amor é procurar a santidade pessoal e a dos outros membros da Igreja. Este é o melhor serviço à Igreja e a modo adequado de pertencer em plenitude à Igreja. Para Caminho, pensar no mal que representa a infidelidade é um forte estímulo para a responsabilidade pessoal: «Terás mais facilidade em cumprir o teu dever, se pensares na ajuda que te prestam os teus irmãos e na que lhes deixas de prestar se não fores fiel» (n. 549).

b) A santidade pessoal comporta, de forma iniludível, a missão apostólica. É outra exigência do amor. Considerávamos, mais atrás, o compromisso apostólico pessoal que o autor revela a cada um: « “Ide, pregai o Evangelho…” (…) disse-o a ti» (cf. n. 904). Em Caminho antecipam-se - como é sabido – uma série de características sobre a missão própria dos fiéis leigos que a Constituição Dogmática Lumen Gentium do Concílio Vaticano II descreverá posteriormente. Especialmente, quando o Concílio destaca a vocação dos leigos para o apostolado e quando realça a sua contribuição específica e necessária na missão da Igreja (cf., p. ex., Const. Dogm. Lumen gentium, n. 33).

Naturalmente, as afirmações de Caminho a este respeito não surgem expressas em linguagem académica. Apresentam-se, como é próprio do género do livro, modelos para um desenvolvimento concreto. Mas não é altura de nos determos neste tema, já abundantemente estudado. Por fim, procura-se enfrentar o cristão com a sua condição e, por conseguinte, esclarecê-lo na sua atuação no meio da sociedade, no lugar em que Deus o encontrar, ou melhor, com palavras do Concílio, ali onde foi chamado: ibi a Deo vocantur (cfr. Const. Dogm. Lumen gentium, n. 31).

O autor, ciente de que os seus leitores habituais integram o imenso número dos membros do Povo de Deus empenhados nas tarefas humanas junto com os seus irmãos os homens, é consciente de que a sua atividade manterá uma característica secular respeitosa para com o valor intrínseco das coisas criadas. Nisto se manifesta também o amor à Igreja: «Quando fervilham “chefiando” manifestações exteriores de religiosidade, pessoas profissionalmente mal conceituadas, com certeza sentis vontade de lhes dizer ao ouvido: por favor, tenham a bondade de ser menos católicos!» (n. 371). Modo de dizer paradoxal do autor, com o intuito de querer defender a Mãe dos defeitos dos seus filhos.

Contudo, porque a atividade da maioria dos cristãos não obedece a um mandato oficial eclesiástico, pode surgir a tentação errónea de pensar que, de certo modo, a sua conduta secular está longe da sua vocação divina ou, então, que as duas não têm pontos de contacto. E, não obstante, sem que a sua a atuação quotidiana tenha algo de eclesiástico, ela é eclesial: nunca se deixa de ser membro da Igreja. E o seu amor à Igreja manifestar-se-á na inquietação apostólica («Pequeno amor se não sentes zelo pela salvação de todas as almas(…)» (n. 796); em sentir-se implicado, ali onde se desenvolve a sua atividade, na missão apostólica de todos: «Lembra-te, meu filho, de que não és somente uma alma que se une a outras almas para fazer uma coisa boa. Isso é muito …mas é pouco. – És o Apóstolo que cumpre um mandato imperativo de Cristo» (n. 942). Um mandato que leva a cumprir a sua missão no local de trabalho concreto, na sociedade; sem converter em eclesiásticos, obviamente, os ambientes em que decorre a sua vida, mas sem esquecer esse «sentire cum Ecclesia», quer dizer, a sua condição de cristão, e que aí ele foi chamado por Deus para impregnar essas realidades com o espírito do Evangelho, para trabalhar pelo Reino de Cristo (36). Caminho recorda-nos o absurdo que seria uma vida dupla do cristão que prescindisse da sua condição quando está presente na construção da sociedade humana. Uma atitude assim, que reduzisse a operatividade da fé ao âmbito meramente intra-eclesial, desvirtuaria a participação própria e específica dos leigos (37). Ao católico deve pedir-se-lhe que o seja em todas as circunstâncias da vida. Ainda mais, deve estar disposto a sacrificar tudo para servir «(…) ainda à custa dos haveres, da honra e da vida, a Igreja de Deus» (n. 519); disposto a suportar tudo «propter electos», pela salvação dos seus irmãos, como S. Paulo (38).

c) O cristão é membro da comunidade humana e também – não o deve esquecer – da Igreja. O seu amor por Ela levá-lo-á, sem esperar outros títulos – graças ao Batismo! –, a defender a sua Mãe como bom filho. Caminho aponta a especial responsabilidade que incumbe neste âmbito aos católicos, que - trabalhando nos meios de comunicação social, ou na vida política ou graças à sua preparação científica – têm uma atividade de grande influência social, para que nunca, pelas suas atuações, possam prejudicar a Igreja: «Quantos crimes se cometem em nome da justiça! – Se tu vendesses armas de fogo, e alguém te desse o preço de uma delas para matar com essa arma a tua mãe, vender-lhas-ias?... Mas porventura não te dava o justo preço?... - Professor, jornalista, político, diplomata: meditai» (n. 400).

Bento XVI.

Será necessário defender sempre a Igreja; não é o discípulo mais que o Mestre e, como Ele, a Igreja surgirá sempre entre os homens como sinal de contradição. De certo modo, a fidelidade a Jesus parece levar esse selo de autenticidade. E, não obstante, o convite evangélico a assemelhar-se à candura da pomba não põe de parte a astúcia da serpente. Talvez uma caricatura da verdadeira humildade – muitas vezes originada no desinteresse pessoal – permitiu, como a história testemunha, o abandono de direitos por parte dos cristãos – em determinadas ocasiões imposto pela violência, certamente – repetindo-se a frase do Evangelho: o joio brota na Vinha do Senhor. «Inimicus homo hoc fecit» (Mt 13, 28). Outras vezes, um complexo de inferioridade face a um mundo avassalador nas suas conquistas técnicas e científicas parecia levar os cristãos a refugiarem-se num «fideísmo prático», a fé do carvoeiro – profundamente legítima em certas ocasiões, mas, sem dúvida, perigosa para os nossos tempos – produzido antes por uma retirada da frente de batalha que por outros motivos. Entende-se, pois, que Caminho não pactue com esse estado de coisas: «Dantes, como os conhecimentos humanos – a ciência – eram muito limitados, parecia muito possível que um só homem sábio pudesse fazer a defesa e a apologia da nossa santa Fé. Hoje, com a extensão e a intensidade da ciência moderna, é preciso que os apologistas dividam entre si o trabalho, para defenderam cientificamente a Igreja em todos os campos. – Tu…não te podes furtar a esta obrigação» (n. 338). Uma manifestação, «opere et veritate», de amor à Igreja será, pois, procurar cultivar a inteligência potenciada com a luz da fé, e alimentada com a doutrina de Jesus Cristo.

Se o amor faz com que os filhos sintam qualquer ataque à Mãe como feitos a si próprios, seria lamentável que, abandonando o sentido comum, houvesse cristãos que – por ingenuidade, ou por inconfessáveis interesses egoístas – fizessem coro com as pessoas que, de uma forma ou de outra, tratam desrespeitosamente a Igreja, a sua fé ou as suas instituições. Referindo-se a possíveis – e reais – ataques à Igreja do lado da ciência, aconselha-nos: «Servir de altifalante ao inimigo é uma soberana idiotice; e, se o inimigo é inimigo de Deus, é um grande pecado. – Por isso, no terreno profissional, nunca louvarei a ciência de quem se serve dela como cátedra para atacar a Igreja» (n.836). O conselho continua sendo atual.

d) As expressões em que se concretiza o amor à Igreja em Caminho não se reduzem a uma atitude de defesa face às traições externas. É natural que o amor leve, principalmente, ao reconhecimento das «magnalia Dei», da ação de Deus, da grandeza do atuar divino na sua Igreja.

Caminho incita-nos, como uma exigência derivada do amor, ao apreço e veneração, por exemplo, do dom do sacerdócio ministerial, fundado nessa representação de Cristo que é o sacerdote: «O Sacerdote – seja quem for – é sempre outro Cristo» (n. 66); ou também o respeito pelo carisma religioso, nas suas múltiplas expressões queridas pelo Espírito: «Se não tens suma veneração pelo estado sacerdotal e pelo religioso, não é verdade que ames a Igreja de Deus» (n. 526). O motivo desse amor remete, por consequência, para a fé na presença de Cristo nos seus ministros, num caso; ou para o reconhecimento do dom de Deus à Igreja, no segundo.

e) Por fim, não podia faltar na obra do santo, em que vibra pela santidade da Igreja, uma referência profunda e radical à liturgia, à oração do Corpo místico de Cristo, Cabeça e membros. Constitui, por assim dizer, a vida interior da Igreja que deve alimentar a vida pessoal do cristão. Por outro lado, um membro da Igreja deve reconhecer na liturgia um motivo mais de agradecimento a Deus, que quis esses bens da graça acessíveis ao homem, traduzidos em sinais; especialmente agradecido se deve mostrar – vimo-lo antes – com aqueles sinais que realizam eficazmente o que significam, os sacramentos (nos quais é o próprio Cristo que atua: cf. n. 521). Toda a vida litúrgica, faz presente – de diversos modos – o mistério cristão. E, por isso, é digna de veneração e necessária: «Tem veneração e respeito pela santa Liturgia da Igreja e por cada uma das suas cerimónias. – Cumpre-as fielmente. – Não vês que nós, os pobrezitos dos homens, necessitamos que até as coisas mais nobres e grandes entrem pelos sentidos?» (n. 522). Respeito que Caminho alarga ao cuidado e esplendor com que se há-de tratar tudo o que se relaciona com o culto divino. O amor ao Senhor, à Igreja, à liturgia, leva a não poupar nada à magnificência divina, segundo mostra a cena evangélica de Mt 26, 6-13, interpretada em Caminho, n. 527: «Aquela mulher que em casa de Simão o leproso, em Betânia, unge com rico perfume a cabeça do Mestre, recorda-nos o dever de sermos magnânimos no culto de Deus. – Todo o luxo, majestade e beleza me parecem pouco. – E contra os que atacam a riqueza dos vasos sagados, paramentos e retábulos, ouve-se o louvor de Jesus: «Opus enim bonum operata est in me» - uma boa obra fez para comigo».

Não se trata em Caminho de elaborar uma teologia do primado, mas sim de suscitar a fé que reconhece no Papa a presença perpétua do ministério petrino de unidade, de comunhão.

«Sentire cum Ecclesia», na vida litúrgica, implica cultivar a vida interior em consonância com a oração «familiar» da Igreja; orar com a liturgia: «A tua oração deve ser litúrgica. – Oxalá te afeiçoes a recitar os salmos e as orações do missal, em vez de orações privadas ou particulares» (n. 86); cantar com a liturgia (39); encontrar na sua solene sobriedade a passagem de Deus entre os homens (40). Até nos detalhes mais pequenos, o autor de Caminho descobre a manifestação de uma fé viva, a serena presença de Deus diante daa qual o homem reconhece a sua soberania, a honra de Deus (41).

Tudo leva também a apreciar as ricas expressões de fé que as devoções populares encerram: «Quem te disse a ti que fazer novenas não é varonil? – Serão varonis estas devoções, sempre que as pratique um varão…, com espírito de oração e penitência» (n. 574).

O amor ao Papa

Dizíamos no princípio destas páginas que o amor à Igreja constitui um dos fios condutores de Caminho com os quais se vai enriquecendo o tecido sobrenatural da existência cristã. No âmbito desse amor à Igreja não pode faltar o amor ao Romano Pontífice. Para o autor de Caminho, o Papa é simplesmente – com tudo o que isso implica - «Pedro», o pescador da Galileia chamado por Cristo para ser rocha firme sobre a qual se iria apoiar a fé dos seus irmãos, uma fé segura porque conta com a oração infalível de Cristo (cf. Lc 22, 32).

O Papa, seja ele quem for, é Pedro e, por consequência, é o Caminho seguro para chegar a Cristo. «Omnes cum Petro ad Iesum per Mariam», é o que nos propõe o autor como orientação para a vida cristã no ponto 833. O Romano Pontífice é visto, pois, na sua qualidade de Sucessor de Pedro, Cabeça visível da Igreja. Certamente, o Papa – dirá a teologia – não possui todas as prerrogativas que Pedro teve, como testemunha direta da vida de Jesus. Em Caminho não se quer elaborar uma teologia do primado, mas sim suscitar a fé que reconhece no Papa a presença perpétua do ministério petrino de unidade, de comunhão. Assim como o Apóstolo das gentes decidiu, movido pela fé no ministério de Pedro na Igreja, ir a Jerusalém depois da sua conversão «videre Petrum», para «ver Pedro» (cf. Gal 1, 18), assim em Caminho o autor convida-nos a valorizar o sentimento de ser filho da Igreja, a alegria de pertencer à Igreja Católica Romana, pelo reconhecimento do Vigário de Cristo na terra: «Católico, Apostólico, Romano! – Gosto que sejas muito romano. E que tenhas desejos de fazer a tua “romaria”, “videre Petrum”, para ver Pedro» (n. 520).

Os desejos de comunhão e o fervoroso amor ao Papa são considerados em Caminho como um dom de Deus, que temos de saber agradecer. «Obrigada, meu Deus, pelo amor ao Papa que puseste no meu coração» (n. 573). Com efeito, ainda que o amor ao Papa possa ser cultivado e crescer no nosso coração não deixa de ser, em última análise, fruto da ação do Espírito Santo que é a alma da Igreja e quem põe a semente da unidade no coração de todos os cristãos.

Este amor à Igreja, concreto e operativo, é realçado em Caminho como um dom de Deus ao homem.

Em conclusão, o amor à Igreja e ao Papa em Caminho não é um sentimento periférico ou acidental, constitui mesmo uma das linhas de força mais profundas do conteúdo do livro, junto com a filiação divina e o chamamento do cristão a viver a santidade no meio do mundo, no trabalho corrente. O amor à Igreja adquire uma dimensão bem concreta no amor às realidades visíveis nas quais se manifesta: a liturgia, a doutrina, o Papa, o estado sacerdotal, os irmãos na fé, e todos os homens, pois todos são chamados a participar na salvação que Cristo proporciona através da Igreja. Daí que o amor à Igreja seja uma força que estimula o cristão no Caminho da santidade e no apostolado, nas próprias realidades temporais, pois é aí onde a Igreja tem o seu ponto de inserção no mundo para o santificar a partir de dentro.

Este amor à Igreja, concreto e operativo, é apresentado em Caminho como um dom de Deus ao homem, algo que o Senhor pôs no coração do cristão e, neste caso, do autor do livro. Entronca-se assim com a virtude teologal da caridade, já que o amor do cristão à Igreja é participação do mesmo amor com que Cristo a ama. O cristão ama, pois, a Igreja com esse amor de Deus e de Cristo que foi derramado nos nossos corações pelo Espírito Santo (Rom 5, 5). O cristão pode contemplar na Igreja a bondade e o amor de Deus que se manifestou em Cristo e nos chega através das ações sacramentais da Igreja. Considerando a realidade sobrenatural e, ao mesmo tempo, humana, da Igreja, compreende-se a verdade profunda do amor, que consiste não em que nós tenhamos amado a Deus, mas sim em que Ele nos amou e nos enviou o seu Filho como propiciação pelos nossos pecados (1 Jo, 4, 10). Assim, na realidade, o amor à Igreja é um dom de Deus, mas um dom que está orientado para suscitar no cristão sentimentos de alegria e de fidelidade à Igreja que impregnam toda a sua existência.

Notas

(1)Anos mais tarde, Mons. Escrivá quis que junto de umas relíquias de Santa Catarina de Sena figurasse esta inscrição: “Dilexit opere et veritate Ecclesiam Dei ac Romanum Pontificem”, como para resumir, em concisa síntese, a vida de entrega da Santa, e a sua admiração pessoal por ela.

(2) Talvez seja ocasião de esclarecer a oposição que por vezes se estabelece entre uma espiritualidade “individualista” e “eclesial”. Toda a espiritualidade cristã correta é, obviamente, eclesial. Contudo, falar de “individualismo” – ininteligível na vida cristã – pode facilmente identificar-se – em claro equívoco – com o cultivo e desenvolvimento -, conduzido pelo Espírito Santo, da vida cristã em cada alma. É certo que um cristão não o é individualmente, mas sim “pessoalmente”, que é coisa totalmente distinta. A Igreja, com palavras de S. Tomás, é «quasi una mystica persona». E não obstante, - este é um mistério da Igreja -, sem rejeitar a personalidade própria de cada um dos seus membros.

(3) É bem conhecida a caracterização do séc. XX como “o século da Igreja”. Com esta denominação alude-se ao despertar da vida cristã para a vida da Igreja, saber-se parte de um todo no qual cada um está incorporado, e que representa uma dimensão essencial da vida de qualquer cristão. Entendemos que este valor se encontra em Caminho, não como afirmação explícita e desenvolvida teologicamente, mas como algo admitido, fomentado e subjacente em muitos dos conselhos espirituais que o autor apresenta. A natureza de Caminho, em qualquer caso, é diferente das obras, hoje já clássicas, que ao longo dos anos influíram na elaboração da eclesiologia dogmática. Pensemos num R. Guardini, K. Adam, Domm Vonier, etc., na Alemanha, ou um H. Clérissac em França. Não tem sentido fazer paralelismos adequados entre géneros diferentes. Não obstante, os dois tipos de obras desembocaram, sem dúvida, no caudal imenso do último Concílio.

(4) Não faria sentido, segundo o nosso parecer, intentar deduzir o pensamento eclesiológico de Mons. Josemaria Escrivá apenas com base em Caminho. Ao longo da sua produção posterior, o autor desenvolveu uma profunda reflexão eclesiológica, cujo conteúdo podemos encontrar já em Caminho, mas – não faz mal repeti-lo – sob o ponto de vista da realidade existencial cristã. Para se ter uma ideia mais completa da personalidade teológica de Mons. Escrivá é imprescindível consultar P. RODRÍGUEZ-P. G. ALVES DE SOUSA-J. M. ZUMAQUERO (dir.), Mons. Josemaría Escrivá de Balaguer y el Opus Dei. En el 50 Aniversario de su fundación, ed. EUNSA, Pamplona, 1985; e P. RODRÍGUEZ, Vocación, Trabajo, Contemplación, ed. EUNSA, Pamplona, 1986. Pelo género próprio de Caminho seria inadequado querer descobrir uma teorização completa sobre os ministérios ou sobre a teologia do laicado, para dar apenas alguns exemplos. Por outro lado, é legítimo sim, e necessário, descobrir a profunda renovação que, como fenómeno pastoral, as afirmações de Caminho revelam sobre as relações entre sacerdócio ministerial e sacerdócio comum, e a maneira própria do viver laical cristão e, por fim, sobre o chamamento universal para a santidade como consequência operativa do Batismo. É neste sentido, segundo a nossa opinião, como João Paulo II pôde dizer de Mons. Escrivá “que, desde os começos, se antecipou á teologia do laicado que caracterizou a Igreja do Concílio e do Pós-Concílio”.

(5) “Contudo, foi vontade de Deus santificar e salvar os homens, não isoladamente, sem conexão alguma de uns com os outros, mas constituindo um povo que o confessasse na verdade e o servisse santamente” (Concilio Vaticano II, Const. Dogm. Lumen gentium, n. 9).

(6) Cf. Commonitorio, cap. II. Não deve surpreender, pois, que o autor de Caminho reflita nos seus textos essas verdades solenemente expostas e ensinadas pelo magistério do Concílio Vaticano II. É o fio da tradição genuína que une a fé cristã através dos séculos; o Espírito Santo que, atuando na Igreja, leva os seus membros a viver a novidade perene do Evangelho.

(7) Os teólogos estranharam repetidamente a ausência, nos Santos Padres, de um tratado teológico expresso sobre a Igreja; mesmo nos Escolásticos, começando por S. Tomás de Aquino, nota-se este fenómeno. É que a Igreja encerra o valor do óbvio: é algo vivido antes de ser expressado, que se realiza na sua liturgia, nos seus sacramentos, na vida de comunhão. O cristão vive imerso nela.

(8) Cf. Concilio Vaticano II, Const. Dogm. Lumen gentium, n. 39.

(9) Especialmente em toda a atuação apostólica: “É inútil que te afadigues em tantas obras exteriores, se te falta Amor. - É como coser com agulha sem linha. Que pena, se afinal tivesses feito o "teu" apostolado, e não o "seu" Apostolado!” (Caminho, n. 967).

(10) É claro - falso amor seria o contrário – que o amor ao Papa inclui o respeito e a veneração pelos seus irmãos no episcopado. Assim o via S. Gregório Magno: “A minha honra é a honra da Igreja universal. A minha honra é a solidez da força dos irmãos. Tributa-se-me, pois, verdadeiramente uma honra, quando não se retira a honra devida a cada um em particular” (Epist. ad Eulogium episc. Alexandrinum VIII, 30: ML, 77, n. 933).

(11) Cf. Const. Dogm. Lumen gentium, n. 3.

(12) Mons. Escrivá, com grande força, afirmaria anos mais tarde: “A Igreja é isto mesmo: Cristo presente entre nós; Deus que vem até à humanidade para a salvar” (Cristo que passa, n. 131).

(13) Cf. Const. Dogm. Lumen gentium, n. 8: “é o Reino de Cristo, presente atualmente em mistério, que pelo poder de Deus cresce visivelmente no mundo” (ibidem, n. 3).

(14) Não podemos falar aqui – não é este o local adequado – dos elementa seu bona Ecclesiae nas igrejas e comunidades separadas de Roma, e que iure pertinent à Igreja única (cfr. Concilio Vaticano II, Decr. Unitatis redintegratio, n. 3).

(15) Const. Dogm. Lumen gentium, n. 1.

(16) É significativo que, tempos depois, S. Josemaria viesse a aplicar este mesmo termo em contexto parecido: “Esta Igreja Católica é romana. Eu saboreio esta palavra: romana! Sinto-me romano, porque romano quer dizer universal, católico; porque me leva a amar carinhosamente o Papa, il dolce Cristo in terra, como gostava de repetir Santa Catarina de Sena, a quem tenho como amiga amadíssima”. (Hom. Lealdade à Igreja, em Amar a Igreja (trad. port.), Lisboa, 1990).

(17) Cf. Const. Dogm. Lumen gentium, n. 5.

(18) O vendaval da perseguição é bom. - Que é que se perde?... Não se perde o que está perdido. - Quando não se arranca a árvore pela raiz - e a árvore da Igreja não há vento nem furacão que a possa arrancar - apenas caem os ramos secos... E esses, bom é que caiam (Caminho, n. 685).

(19) Não deve pensar-se que este encargo fosse exclusivo dos Apóstolos e dos seus sucessores, a Ordem episcopal. Toda a Igreja recebe a missão, o “envio”, por natureza própria é “enviada”. Por certo, cada membro realizá-la-á segundo a sua posição na Igreja: suo modo, pro parte sua, segundo as expressões que o Concílio Vaticano II utiliza, ao referir-se a essa diversidade das condições cristãs, posteriores à sua igualdade batismal radical. O autor de Caminho, nesse sentido, não duvida em referir a missão a cada cristão.

(20) “Mas... e os meios? - São os mesmos de Pedro e de Paulo, de Domingos e Francisco, de Inácio e Xavier: o Crucifixo e o Evangelho... - Porventura te parecem pequenos?” (Caminho, n. 470)

(21) Cf. Caminho, n. 779.

(22) “Oxalá fossem tais as tuas atitudes e as tuas palavras, que todos pudessem dizer quando te vissem ou ouvissem falar: "Este lê a vida de Jesus Cristo". (Caminho, n. 2)

(23) “Lembra-te, meu filho, de que não és somente uma alma que se une a outras almas para fazer uma coisa boa. Isso é muito..., mas é pouco. - És o Apóstolo que cumpre um mandato imperativo de Cristo” (Caminho, n. 942).

(24) “Não pode ter Deus como Pai quem não tem a Igreja como Mãe”, escrevia S. Cipriano no seu Tratado sobre a Igreja católica, cap. 6. E de forma parecida Santo Agostinho: “Amemos o Senhor nosso Deus, amemos a sua Igreja. A Ele como um pai, a ela como uma mãe…” (Enarrationes in Psalmos, 88, 2; PL 37, 1140). Numa homilia pronunciada em 1972 sobre o fim sobrenatural da Igreja, Mons. Escrivá reuniria as duas citações dos Santos Padres, falando precisamente do amor filial à Igreja. Um exemplo mais de como Caminho se entrelaça com a tradição patrística.

(25) “Com que infame lucidez argui Satanás contra a nossa Fé Católica. Mas digamos-lhe sempre, sem entrar em discussões: eu sou filho da Igreja” (Caminho, n. 576).

(26) “Se és tão miserável, como estranhas que os outros tenham misérias?” (Caminho, n.446)

(27) “Quando tiveres terminado o teu trabalho, faz o do teu irmão, ajudando-o, por Cristo, com tal delicadeza e naturalidade, que nem mesmo o favorecido repare que estás a fazer mais do que em justiça deves. - Isso, sim, é fina virtude de filho de Deus!” (Caminho, n. 440).

(28) “A murmuração é crosta que suja e entorpece o apostolado. - Vai contra a caridade, tira forças, rouba a paz, e faz perder a união com Deus” (Caminho, n. 445).

(29) “A murmuração é crosta que suja e entorpece o apostolado. - Vai contra a caridade, tira forças, rouba a paz, e faz perder a união com Deus” (Caminho, n. 460).

(30) “Se sentires a Comunhão dos Santos - se a viveres - serás de bom grado um homem penitente. - E compreenderás que a penitência é "gaudium, etsi laboriosum" - alegria, embora trabalhosa. E sentir-te-ás "aliado" de todas as almas penitentes que foram, são e serão” (Caminho, n. 548).

(31) “O esforço de cada um de vós, isolado, é ineficaz. - Se vos unir a caridade de Cristo, ficareis maravilhados com a eficácia” (Caminho, n. 847).

(32) “Ser "Católico" é amar a Pátria, sem admitir que ninguém tenha maior amor, e, ao mesmo tempo, ter por meus os nobres ideais de todos os povos. Quantas glórias da França são glórias minhas! E igualmente muitos motivos de orgulho de alemães, de italianos, de ingleses... de americanos e asiáticos e africanos, são também orgulho meu. - Católico!... Coração grande, espírito, aberto” (Caminho, n. 525).

(33) “É mau espírito o teu, se te dói que outros trabalhem por Cristo sem contarem com o teu apostolado. - Lembra-te desta passagem de São Marcos: "Mestre: vimos um que não anda connosco, expelir os demónios em teu nome, e nós lho proibimos. Jesus, porém, disse: Não lho proibais, porque não há ninguém que faça um milagre em meu nome e que possa logo dizer mal de mim. Porque quem não é contra nós, está connosco" (Caminho, n. 966).

(34) É admirável a grandeza de coração que Deus concedeu a S. Josemaria no âmbito – a ação apostólica – em que tão subtilmente reaparecem na Igreja as zelotipias que o Apóstolo já denunciava: Eu sou de Paulo, eu sou de Apolo, eu sou de Cefas, eu de Cristo. Cristo está dividido? Ou Paulo foi crucificado por vós ou fostes batizados no seu nome? (1 Cor 1, 12-13).

(35) Considerando as coisas da nossa perspetiva atual e, a partir da receção solene desta doutrina no Concílio Vaticano II (cf. Const. Dogm. Lumen gentium, n. 40, & 2), pode chamar a atenção que esta afirmação fosse uma novidade nos anos em que Caminho é publicado. Como princípio, certamente, ninguém negaria a afirmação do Evangelho. No entanto, as implicações que Mons. Escrivá desenvolve em Caminho sobre uma espiritualidade para um cristão normal e corrente – o leigo – própria e adequada à sua posição na Igreja e no mundo, essas sim representavam uma novidade no ambiente da época em que o modelo de perfeição religiosa, com a profissão dos conselhos evangélicos coram Ecclesiam, se apresentava como a base de qualquer espiritualidade tanto para leigos como para clérigos.

(36) “Que preocupação há no mundo por mudar de lugar! - Que aconteceria se cada osso, se cada músculo do corpo humano quisesse ocupar um posto diferente do que lhe compete? Não é outra a razão do mal-estar do mundo. - Persevera no teu lugar, meu filho; daí, quanto não poderás trabalhar pelo reinado efetivo de Nosso Senhor!” (Caminho, n. 832).

(37) “Aconfessionalismo. Neutralidade. - Velhos mitos que tentam sempre remoçar. Tens-te dado ao trabalho de meditar no absurdo que é deixar de ser católico ao entrar na Universidade ou na Associação profissional, ou na sábia Assembleia, ou no Parlamento, como quem deixa o chapéu à porta?” (Caminho, n. 353).

(38) "Ideo omnia sustineo propter electos" - Tudo sofro pelos escolhidos - "ut et ipsi salutem consequantur" - para que eles obtenham a salvação - "quae est in Christo Jesu" - que está em Jesus Cristo. - Bom modo de viver a Comunhão dos Santos! - Pede ao Senhor que te dê este espirito de São Paulo” (Caminho, n. 550).

(39) “A Igreja canta - disse alguém - porque falar não seria bastante para a sua oração. - Tu, cristão - e cristão escolhido - deves aprender a cantar liturgicamente” (Caminho, n. 523).

(40) “Viste-me celebrar a Santa Missa sobre um altar despido - mesa e ara - sem retábulo. O Crucifixo, grande. Os castiçais maciços, com tochas de cera, escalonados: os mais altos, junto da Cruz. Frontal da cor do dia. Casula ampla. O cálice, severo de linhas, de copa larga, e rico. Ausente a luz eléctrica, cuja falta não notámos. - E custou-te sair do oratório: estava-se bem ali. Vês como leva a Deus, como aproxima de Deus o rigor da liturgia?” (Caminho, n. 543).

(41) “Há uma urbanidade da piedade. - Aprende-a. - Dão pena esses homens "piedosos", que não sabem assistir à Missa - ainda que a ouçam diariamente - nem benzer-se (fazem uns estranhos trejeitos, cheios de precipitação), nem dobrar o joelho diante do Sacrário (as suas genuflexões ridículas parecem um escárnio), nem inclinar reverentemente a cabeça diante de uma imagem da Senhora” (Caminho, n. 541).