São Josemaria e Pio XII

O Papa Pio XII manifestou o seu apreço pelo Opus Dei e pelo seu fundador, quando esta instituição ainda era muito nova na Igreja.

As primeiras palavras de afeto e alento que o fundador do Opus Dei escutará em Roma serão de mons. Giovanni Battista Montini, um italiano de Brescia, inteligente e sensitivo, que desde o fim da guerra mundial cuida da delicada tarefa de restabelecer as relações diplomáticas do Vaticano. Passados vários anos, Montini governará a Igreja com o nome de Paulo VI.

Agora, como se intuísse que mais cedo ou mais tarde Pio XII e o Fundador do Opus Dei manteriam um relacionamento contínuo, Montini começa já a “atapetar” o primeiro encontro com um pormenor bem humano: conversando certa vez com Salvador Canals e outros dois da Obra, pede-lhes “alguma fotografia do Fundador, para poder mostrá-la ao Papa”. Um deles, Julián Urbistondo, leva prontamente a mão ao bolso interior do paletó, puxa da carteira e mostra a Montini uma foto pequena do Padre, dessas que têm as bordas serrilhadas. Por um instante, duvida se é correto ou não fazer chegar às mãos do Santo Padre uma fotografia como essa: um tanto amarelecida e com umas palavras escritas por trás... Montini não pode evitar um sorriso de admiração ao ler a curiosa dedicatória que Escrivá traçou no verso da cartolina: “Malandro: como te comportas com os teus pais?”[1]

Pio XII já tinha recebido Álvaro del Portillo duas vezes; e também, em duas ocasiões diferentes, os professores de Direito Orlandis e Canals, além do cientista José Maria Albareda, cuja envergadura intelectual impressionara o Pontífice. Agora prepara-se a primeira audiência do Papa com mons. Escrivá, que terá lugar poucos dias depois: a 16 de julho. Pio XII não só conhecia, pois, vários membros da Obra, como desde 1943 rezava nominalmente pelo Fundador e tinha entre os seus livros um exemplar de Caminho.

Autógrafo do Papa Pio XII com a sua Bênção para o Opus Dei e para o seu fundador.

Nessa conversa privada, Escrivá explica ao Papa o que é e o que não é o Opus Dei. E Pio XII aconselha-o a pôr-se em contato com as pessoas que vêm levando a cabo uns trabalhos jurídicos que desembocarão na nova Constituição Apostólica Provida Mater Ecclesia. É desse documento que surgirão os Institutos Seculares. O Opus Dei poderá ter assim um certo enquadramento canônico dentro da Igreja. Não é uma fórmula feliz, porque os membros do Opus Dei não vivem nem devem viver o “estado de perfeição”[2], que, no entanto, é plenamente assumido pelos Institutos Seculares. De alguma forma, porém, sanciona-se nela a realidade – até então inédita – da plena entrega a Deus dos leigos, sem deixarem de permanecer no mesmo estado de vida, função e lugar que ocupam no mundo.

Com o Decretum laudis de aprovação do Opus Dei, exarado também por Pio XII apenas três semanas depois[3], Escrivá obtém o reconhecimento da vocação universal para a santidade que a Obra promove, tanto para homens como para mulheres, para sacerdotes como para leigos: uma mesma vocação, sem graus, sem diferenças, sem escalas e sem promoções.

Para consegui-lo, não teve de servir-se de atalhos nem de desvios de privilegiados: Josemaria Escrivá reza e faz rezar, estuda e faz estudar, trabalha e faz trabalhar. Bate à porta daqueles de quem tem de fazer-se ouvir. Faz hora em muitas, muitíssimas, salas de espera. E fala sempre com a força e a humildade de quem está empenhado em levar para a frente algo que não é uma ambição pessoal, mas um empreendimento querido e requerido por Deus. Essa segurança de que a Obra é divina será, sem dúvida, a chave da sua persuasão.

Mas a Constituição Provida Mater Ecclesia não é – como logo se veria – a “roupa adequada” para andar pelas ruas do mundo, nel bel mezzo della strada, como pessoas correntes, ordinary people: como outros quaisquer. Por isso, a todo o momento e em todas as instâncias, Escrivá afirma com clareza e tenacidade baturras[4] que ele está na dinâmica de uma espera: num “conceder sem ceder, com ânimo de recuperar”[5].

“O Opus Dei – escreverá anos mais tarde – suscitou e resolveu na Igreja de Deus muitos problemas jurídicos e teológicos – digo-o com humildade, porque a humildade é a verdade –, que parecem simples quando estão solucionados: entre eles, este de que não existe senão uma só classe, ainda que esteja formada por clérigos e leigos”[6].

Pio XII vislumbra um panorama esplêndido: a santidade individual e o apostolado pessoal que o Opus Dei poderá irradiar por toda a terra. Também se apercebe da têmpera espiritual de Josemaria Escrivá e da envergadura divina da sua fundação, que ele mesmo aprovará de modo definitivo em 16 de junho de 1950. Um pouco mais tarde, em conversa com o cardeal Norman Gilroy, de Sidney, Austrália, o Papa diz-lhe que está profundamente impressionado com uma recente visita de Escrivá: “É um verdadeiro santo, um homem enviado por Deus para o nosso tempo” (“È un vero santo, un uomo mandato da Dio per i nostri tempi”)[7]. Nada faz pressentir então as horas amargas, os duríssimos sofrimentos que Josemaria haverá de padecer durante esse pontificado, sem que o Papa o queira (...).

As suas diligências nas repartições vaticanas continuam com intensidade. É um braço-de-ferro de lógica jurídica, que procura abater velhas muralhas canônicas para abrir um caminho à Obra. Não é fácil. As dobradiças de algumas portas estão oxidadas há muitos séculos. As fórmulas obtidas em 1941, em 1943, e a que se prepara agora, para torná-la oficial em 1947, são as soluções possíveis e as mais adequadas... Ou seja, as menos inadequadas. Mas “não havia outra saída: ou se aceitava tudo ou continuávamos sem uma senda por onde caminhar. Realmente, fomos a agulha para enfiar a linha, e a experiência vem-nos confirmando que aqueles que pediram depois a aprovação como Institutos Seculares se encontram à vontade e aceitam com alegria – porque esse é o seu caminho – até as coisas que não combinam com a nossa secularidade: cada dia se vê mais claramente que, deixando a linha, a agulha deve sair do tecido a que agora chamam Institutos Seculares”[8] (...).

A 31 de agosto, Escrivá retorna a Madrid. Leva dois documentos importantes: o breve Cum Societatis e a carta Brevi sane, de louvor aos fins da Obra. E um curioso presente pessoal do Papa, digno da maior estima: as relíquias completas de Santa Mercuriana e São Sínfero, dois jovens mártires cristãos. Pio XII manifesta assim que entendeu a semelhança entre os membros do Opus Dei e aqueles primeiros cristãos; como entendeu também que a chamada à santidade não tem idade – inicia-a o Espírito Santo, quando invade a alma com o batismo –, e que na Obra há mulheres e homens, como em qualquer família e como em qualquer porção do povo de Deus: dois corpos, separados e distintos, mas animados por uma mesma e única alma (...).

Em Roma, intensificam-se os trabalhos de redação da Constituição Provida Mater Ecclesia. Acodem muitas visitas ao apartamento de Città Leonina. Na sua grande maioria, são personagens eclesiásticas que trabalham nos diversos dicastérios e congregações da Cúria. Mas o Padre sente-se como uma mola comprimida. E não perde um minuto, nem dá ponto sem nó, antes vive num ritmo interior de urgência: a Obra não pode andar ao passo dos homens, mas “ao passo de Deus”. A 6 de dezembro, escreve aos membros da Obra residentes em Madrid: “Todas as nossas coisas andam bem, mas com excessiva calma”[9].

Dois dias depois, é recebido novamente por Pio XII em audiência privada. A 16 do mesmo mês, em outra carta aos seus de Madrid, diz-lhes: “Não vos esqueçais de que foi na oitava da Virgem que começou a forjar-se a solução de Roma”[10]. O Fundador pôde saber que a Santa Sé não só está disposta, mas desejosa de conceder quanto antes a aprovação ao Opus Dei. Convém aproveitar essa oportunidade, mesmo que o que se venha a obter seja provisório. Prosseguem, pois, as diligências (...).

Em breve começar-se-á a procurar aquela que será a sede definitiva do Opus Dei. Mons. Montini e mons. Tardini sugerem a Escrivá que se instale perto da Santa Sé: que arranje uma casa, “e casa ampla”, em Roma (...).

O conselho de Montini e de Tardini é dos mais acertados: convém que se instalem perto da Santa Sé. São várias as razões. É preciso roturar o caminho jurídico. A Obra tem de romanizar-se, o que não é “vaticanizar-se”, mas transmitir de Roma a sua genuína entranha universal. Escrivá quer que o Papa sinta a proximidade do seu amor de bom filho e possa contar com a Obra como um instrumento de apostolado laical “que só deseja servir a Igreja, sem se servir dela”. (...)


Extraído do livro de Pilar Urbano, O homem de Villa Tevere: Os anos romanos de Josemaria Escrivá (trad. port.), São Paulo, Quadrante, 1996, Capítulo 3.


[1] AGP, RHF T-21167, págs. 1323-1324.

[2] Expressão canônica que designa o estado próprio dos religiosos (N. do T.).

[3] A Provida Mater Ecclesia está datada de 2 de fevereiro de 1947 e o Decretum laudis da aprovação canônica do Opus Dei é do dia 24 de fevereiro de 1947.

[4] Nome por que são conhecidos os populares de Aragão, pelo seu modo de ser franco e tenaz (N. do T.).

[5] Carta, 8-XII-1949, n. 18.

[6] Carta, 8-VII-1956, n. 5.

[7] Testemunho de d. Thomas Muldoon, bispo titular de Fessei e auxiliar de Sidney, Austrália (AGP, RHF T-04261.

[8] Carta, 7-X-1950, ns. 21 e 22.

[9] AGP, RHF, EF 461206-2.

[10] AGP, RHF, EF 461216-1.